Vacina de Oxford: especialistas questionam dados sobre eficácia da meia dose e transparência em testes
Especialistas que acompanham o desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19 passaram a reunir dúvidas sobre alguns pontos dos dados divulgados nesta semana pela farmacêutica AstraZeneca, que tem parceria com Universidade de Oxford, no Reino Unido.
O primeiro panorama com as dúvidas sobre a transparência dos estudos foi publicado em reportagem do jornal “The New York Times” na quarta-feira (25). A vacina batizada de ChAdOx1 já tem previsão de distribuição no Brasil, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021: o governo federal vai investir R$ 1,9 bilhão para produção de 100 milhões de doses.
Os dados fornecidos pelos desenvolvedores ainda não foram publicados em revista científica. A empresa relatou que o imunizante teve eficácia de 90% entre o grupo que recebeu meia dose na primeira etapa da vacinação.
Entretanto, a meia dose não estava prevista no protocolo da pesquisa. Por causa deste e de outros pontos, os pesquisadores levantam os seguintes questionamentos:
- Foram apresentados três percentuais de eficácia (70% média, 90% no grupo meia dose e 60% no grupo duas doses). Qual a eficácia da vacina?
- Quantas pessoas do grupo com eficácia de 90% tiveram Covid-19?
- Quantos casos graves de Covid-19 ocorreram no grupo que recebeu o placebo?
- Apenas voluntários jovens tomaram a meia dose? Como essa dosagem se comporta em outras faixas etárias?
- Qual a diferença de eficácia entre a dose completa e a meia dose?
- Por que as pesquisas clínicas da vacina em diferentes países não seguem um protocolo único?
Em nota, a AstraZeneca informou ao G1 que o regime de meia dose foi analisado pelo Comitê Independente de Monitoramento de Segurança e Dados e pela agência reguladora do Reino Unido (MHRA), que indicou a continuidade do estudo.
Além disso, a farmacêutica informou que “dada a alta eficácia” verificada “com os diferentes regimes de dosagem, (…) há forte evidência em continuar a investigar e entender esses achados a fim de estabelecer o regime de dosagem mais eficaz para a vacina”.
Em entrevista à agência de notícias “Bloomberg” nesta quinta-feira (26), Pascal Soriot, diretor da farmacêutica AstraZeneca, disse que a vacina deve passar por um “estudo adicional” para reavaliar a eficácia de aplicar uma meia dose combinada com uma dose inteira da imunização.
“Agora que descobrimos o que parece ser uma eficácia melhor, temos que validar isso, então precisamos fazer um estudo adicional” – Pascal Soriot, diretor da farmacêutica AstraZeneca, em entrevista à Bloomberg
Especialistas cobram dados
Em entrevista à agência Reuters, Peter Openshaw, professor de medicina experimental do Imperial College London, disse que, atualmente, tudo o que a comunidade científica conhece é uma quantidade “limitada de dados” sobre a vacina.
“Temos que esperar os dados completos e ver como as agências reguladoras veem os resultados”, disse Openshaw, acrescentando que as agências americana e europeia “podem possivelmente ter uma visão diferente” um do outro.
No centro das preocupações está que o resultado mais promissor do teste de 90% vem de uma análise de subgrupo – uma técnica que muitos cientistas dizem que pode produzir leituras incorretas.
De acordo com a agência de notícias Reuters, Moncef Slaoui, assessor científico chefe do programa de vacinas do governo dos EUA, Operação Warp Speed, ninguém no subgrupo que recebeu a meia dose inicial tinha mais de 55 anos – sugerindo que a eficácia do regime em grupos cruciais de idade avançada não foi comprovada nestes dados provisórios.
No grupo que recebeu uma dose completa correta seguida por uma dose completa, segundo Slaoui, as pessoas mais velhas foram incluídas.
“Há uma série de variáveis que precisamos entender e qual tem sido o papel de cada uma delas em alcançar a diferença de eficácia”, disse Slaoui na terça-feira. “Ainda é possível que a diferença (em eficácia) seja uma diferença aleatória”, acrescentou. “É improvável, mas ainda é possível.”
Detalhes do subgrupo e dados
O professor de medicina da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, Paul Hunter afirmou que “as análises de subgrupos em ensaios clínicos randomizados sempre apresentam muitas dificuldades” e aumentam o risco de “erros do tipo 1”, que são o tipo que ocorre quando uma intervenção é considerada eficaz quando, na verdade, não o é.
Isso acontece porque o número de participantes reduzido em um subgrupo pode tornar mais difícil ter certeza de que uma descoberta não se deve apenas a diferenças ou semelhanças casuais entre os participantes.
“Para ter fé nos resultados”, disse Hunter, qualquer análise de subgrupo “deve ser suficientemente desenvolvida” com um grande número de voluntários para fazer as leituras.
“O diabo está nos detalhes”, disse Danny Altmann, professor de imunologia do Imperial College London. “Estamos tentando avaliar projetos de teste realmente bastante complexos com base em pequenos comunicados à imprensa.”
“Muitas perguntas ficaram sem resposta”, disse Morgane Bomsel, especialista do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, acrescentando: “Temos a impressão de que eles (AstraZeneca) estão escolhendo seletivamente os dados.”
Transparência
A microbiologista Natália Pasternak questionou a transparência dos estudos durante de desenvolvimento da vacina e ressaltou que a meia dose foi aplicada somente a voluntários jovens.
“A meia dose foi um erro, e pior, foi dada apenas para voluntários jovens. A empresa tentou encobrir o fato”, escreveu Pasternak nas redes sociais.
“Não é o caso de a vacina ter subido no telhado. Ainda pode ser uma boa vacina. Mas certamente é o caso de aguardar a análise primária completa e também estudar a meia dose em um ensaio separado com número maior de voluntários e de forma transparente” – Natália Pasternak, microbiologista
Para a epidemiologista Denise Garrett, não é possível afirmar qual a real eficácia da vacina, uma vez que a aplicação da meia dose foi um erro, e não parte prevista da pesquisa. Além disso, Oxford/AstraZeneca não divulgaram partes importantes do estudo, como o número de casos de Covid-19 no grupo que teve 90% de eficácia.
“O que temos até o momento são dados sólidos para uma vacina menos eficaz (62%) e dados menos sólidos para uma vacina mais eficaz (90%)”, postou Garrett em seu Twitter.
A especialista em ensaios de vacinas, Natalie Dean, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, postou em seu Twitter que os ensaios clínicos da vacina realizados em diferentes países não estão seguindo um protocolo unificado de desenvolvimento.
“A AstraZeneca está avaliando sua vacina em vários ensaios em todo o mundo, mas eles não estão incluídos em um protocolo unificado. Na verdade, os ensaios parecem ser bastante diferentes por país, em termos de populações, subgrupos, etc.”, ressaltou Dean.
A especialista americana sugeriu que os dados preliminares apresentados esta semana sejam submetidos a uma revista científica para que passem pela revisão dos pares.
Segundo o anúncio de Oxford/AstraZeneca na segunda-feira (23), a combinação da meia dose com uma dose completa acabou tendo uma eficácia maior na proteção contra a doença, de 90%. Em contrapartida, a eficácia nos participantes que receberam as duas doses completas foi menor, de 62%.
Das 11.636 pessoas vacinadas, 8.895 receberam 2 doses completas da vacina, com um mês de diferença, conforme planejado. Os outros 2.741 voluntários receberam uma meia dose, que foi seguida de uma dose completa um mês depois.
Casualidade dos erros
Na segunda-feira (23) Mene Pangalos, vice-presidente executivo da AstraZeneca, afirmou que a meia dose aplicada em parte dos voluntários da vacina foi uma “casualidade”.
“O motivo de termos a meia dose é a casualidade”, disse Mene Pangalos, chefe de pesquisa e desenvolvimento não oncológico da AstraZeneca, à Reuters.
Segundo a agência de notícias, na época em que a farmacêutica iniciava sua parceria com Oxford, no final de abril, pesquisadores da universidade estavam aplicando doses em voluntários na Grã-Bretanha.
Mas eles logo perceberam que os efeitos colaterais previstos, como fadiga, dores de cabeça ou no braço, foram mais leves do que o esperado, disse Pangalos à agência.
“Então, voltamos e verificamos… e descobrimos que eles haviam calculado a dose da vacina pela metade”, disse o vice-diretor. Pangalos também afirmou que a empresa decidiu continuar com a meia dose e administrar a dose completa de reforço conforme o programado.