Cientistas da Unicamp investigam sequelas em pacientes recuperados de COVID-19
Desde o primeiro caso oficial de COVID-19 na China, pesquisadores buscam desvendar o mecanismo de ação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), que ataca diversos órgãos além dos pulmões e provoca alterações na circulação, podendo levar à morte não apenas por insuficiência pulmonar.
O Serviço Nacional de Saúde de países em estágios mais avançados da pandemia, como o Reino Unido, avalia que diversas sequelas físicas, cognitivas e psicológicas devem persistir em pacientes, principalmente as respiratórias, se seguirem os padrões de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).
Publicações recentes nas revistas científicas New England Journal of Medicine e Brain documentam os sintomas neurológicos em pacientes com a doença, que variam de simples dificuldades cognitivas à confusão mental, além de dor de cabeça, perda de olfato e formigamento, assim como encefalites, hemorragia, trombose, AVC isquêmico, mudanças necróticas e Síndrome de Guillain-Barré, condições neurológicas nem sempre correlacionadas à severidade de sintomas respiratórios.
“O que mais impressionou os patologistas foram os sinais de isquemia e hipoxemia, mais que lesões inflamatórias. É extremamente intrigante e não sabemos a razão pela qual o vírus causa tantos problemas neurológicos. A via olfatória é uma possível porta de entrada, mas não apenas ela justificaria os problemas psiquiátricos”, explica Clarissa Lin Yasuda, neurologista do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Estadual de Campinas, ao Portal da Unicamp.
Coordenação motora
Não foi detectado vírus no líquor (líquido cefalorraquidiano) em nenhum dos estudos mencionados. Clarissa comenta o caso de um paciente com quadro muito grave de perda de coordenação motora também com ausência do vírus nas imagens de ressonância magnética e no líquor.
“Parece que os efeitos não ocorrem por ação direta do vírus e sim por mecanismos mais indiretos que fazem lesões no sistema nervoso. Não vimos muitos casos de encefalite específica ou necrotizante tão graves como os reportados nesses estudos e sim outras manifestações como a Síndrome de Guillain-Barré que podem evoluir para quadros muito graves”, salienta.
Patologistas avaliam lesões nos tecidos e órgãos e auxiliam no tratamento de casos graves. “Autópsias que realizamos nos últimos meses em pacientes diagnosticados com COVID-19 revelam que o vírus se espalha por vários órgãos como o coração e rins além dos pulmões e chega ao cérebro por meio do nervo olfatório”, disse Paulo Saldiva, patologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), durante a Reunião Anual Virtual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 13 de julho. Segundo o especialista, em muitos casos, as alterações cardiovasculares acontecem mesmo quando o pulmão está mais preservado.
Comportamento
De acordo com cientistas, o comportamento do SARS-CoV-2 a longo prazo é um enigma preocupante. O vírus varicella-zóster que causa a catapora, por exemplo, pode ficar inativo na medula espinhal por anos e reativar em situação de imunidade baixa provocando a herpes-zóster (cobreiro).
Clarissa comenta dois casos de pacientes já recuperados da COVID-19, desde abril, que voltaram a ter sintomas em julho quando testaram novamente positivos no RT-PCR, teste usado para análise da expressão gênica e quantificação do RNA viral.
“Não estão com alterações neurológicas, mas com sintomas da COVID-19. Os infectologistas não sabem se eles se contaminaram novamente com o SARS-CoV-2 ou com outro vírus não detectado, ou se o SARS-CoV-2 ficou alojado no tecido. É impossível dizer pois não se sabe se as pessoas desenvolvem ou não imunidade a esse vírus”, alerta a neurologista.
Apesar de o impacto do SARS-CoV-2 nos pulmões ser precedente, impactos duradouros no sistema nervoso podem ser maiores e até mais avassaladores devido à difícil regeneração do tecido nervoso podendo resultar em incapacidades gerais já que o sistema nervoso coordena as funções do organismo como um todo.
Rastros
O Sistema de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde aponta que 50% dos pacientes mais graves sobrevivem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a chance de sequelas aumenta em pacientes graves que tiveram permanência prolongada em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e necessidade de usar aparelhos respiradores. A recuperação pode levar de três a seis semanas ou mais.
Muitas podem ser as complicações pós-intubação decorrentes da intubação (respiração artificial) prolongada seguida de traqueostomia (procedimento que facilita a chegada de ar aos pulmões quando há obstruções), sendo os mais comuns danos laríngeos como lesões nas cordas vocais e estreitamento da laringe, e traumas nas vias aéreas. Podem causar prejuízos à vocalização, à respiração e à deglutição.
Luciana Castilho de Figueiredo, supervisora da fisioterapia da UTI do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, enfatiza a necessidade de reabilitação multiprofissional e interdisciplinar dos pacientes pós-COVID-19 graves, envolvendo fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas e outros.
“Sintomas como a perda de paladar e olfato já eram sinais de algo muito sério em relação ao hábito alimentar e agrava-se mais por causa da disfagia (dificuldade de engolir) decorrentes da intubação prolongada e traqueostomia”, destaca ao Portal da Unicamp.
Alterações da deglutição não tratadas adequadamente; podem acarretar desnutrição, desidratação, broncopneumonia e até levar à morte. “Falar e comer fazem parte de hábitos de felicidade, faz parte do que é digno para as pessoas”, salienta a fisioterapeuta.
Processos embólicos podem ocorrer no desmame da ventilação mecânica ou devido à resposta inflamatória exagerada. Pequenos coágulos se desprendem e são transportados pelo sangue até vários órgãos onde podem obstruir vasos e impossibilitar a oxigenação das células.
As consequências podem ser embolia pulmonar, tromboses, ataques cardíacos e AVC isquêmico (acidente vascular cerebral). “Um AVC isquêmico pode gerar uma infinita quantidade de comprometimentos como a paralisia de movimentos e perda da fala”, enfatiza Luciana.
“Percebemos uma polineuropatia [distúrbio dos nervos] que aparece de forma muito aguda, rápida e grave englobando fraqueza muscular e perda muscular e da motricidade”, comenta a fisioterapeuta. Pacientes menos graves estão manifestando desenvolvimento gradativo de sinais da polineuropatia: sensação de formigamento e dormência, dor semelhante à queimação e incapacidade de sentir vibrações ou a posição dos membros e das articulações.
Foi o que relatou Alessandra Alday, 48 anos, ao Portal da Unicamp. “Há dois meses tive os primeiros sintomas da Covid-19 e ainda sinto fraqueza, dores musculares no corpo e forte indisposição, como uma fadiga crônica. Só depois vieram as sensações de formigamento e peso nas pernas. O médico suspeita de desordem neurológica periférica semelhante à Síndrome de Guillain-Barré”, revela Alessandra, que testou positivo para a doença em maio.
Fisioterapia
Luciana salienta que a intervenção fisioterapêutica tem um impacto muito grande na reabilitação do paciente COVID-19 grave. “Visa a fazer o paciente reaprender a respirar sozinho de forma espontânea e segura, pois só assim ele poderá sair da UTI para a enfermaria. Auxilia na mobilização precoce ao longo da internação com finalidade de auxílio no deslocamento. Nas sequelas respiratórias persistentes e que não evoluírem para fibrose (substituição do tecido pulmonar funcional por tecido não funcional, cicatriz) acentuada com dependência de oxigênio, a fisioterapia na reabilitação cardiovascular que envolve uma adaptação fisiológica ao exercício é fundamental”, diz.
O cenário ainda é obscuro e será necessário o monitoramento das complicações nas vítimas da COVID-19. O HC-Unicamp avalia implementar um programa de telemedicina e telerreabilitação.
“O primeiro passo seria avaliar o prejuízo respiratório demonstrado pela fadiga na prova de função pulmonar, seguido de um programa de reabilitação individualizado em que o paciente pudesse receber um kit com um dispositivo de comunicação, um exercitador respiratório e um programa de atividade que ele possa fazer em casa”, informa a fisioterapeuta.
Dados preliminares coletados pela neurologista Clarissa através de questionário on-line apontam que cerca de 67% dos pacientes recuperados da Covid-19 sem internação apresentam algum sintoma neurológico persistente: fadiga crônica (30%), problemas de memória (25%), perda de olfato (20%), dores de cabeça (15%) e perda de paladar (10%). Apenas 33% se consideram sem sintomas.
“É muito grave dizer que apenas 33% se consideram saudáveis e sem sintomas, sendo que nenhum desses pacientes foi internado. Imagine a situação dos pacientes graves como será”, enfatiza Clarissa.
Alterações neurológicas
O Laboratório de Neuroimagem do HC-Unicamp, associado ao Cepid Brainn (Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia, vinculado ao programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) realizará um estudo de ressonância magnética em pacientes com quadros neurológicos pós-COVID-19 e que tiveram alterações neurológicas na fase aguda, em pacientes com poucas alterações neurológicas ou apenas alterações do olfato e paladar, e nos assintomáticos do ponto de vista neurológico.
“No processamento de imagem conseguimos detectar alterações cerebrais sutis. Minha hipótese é que o vírus poderia causar alterações estruturais ou mesmo da função cerebral, ou até algum grau de atrofia”, explica a neurologista. O acompanhamento desses pacientes permitirá avaliar o impacto do SARS-CoV-2 no sistema nervoso a longo prazo.
“É difícil falar sobre as marcas da COVID-19. A quantidade de mortes é um impacto que não tem tamanho. O negacionismo da ciência e descuido com as vidas me impressiona. Senti tristeza, desânimo, medo de transmitir o vírus para a minha família, medo de morrer ou ter sequelas. Estou aprendendo uma nova forma de viver curtindo minhas flores e redescobrindo pequenas coisas que me dão alegria. A perspectiva de ressignificação me dá esperança. Aqui tem vida e ela está florescendo”, refletiu Alessandra Alday.