Como o Brasil foi afetado pela pandemia de H1N1, a 1ª do século 21?
O novo coronavírus, descoberto em dezembro na China, se disseminou para mais de 160 países em pouco menos de três meses.
O número de pessoas infectadas já passa de 370 mil, de acordo com os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), e mais de 16 mil morreram nesta pandemia.
A rápida escalada do número de casos e de vítimas observada no mundo também vem ocorrendo no Brasil, onde o primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro. Em menos de um mês, foram registradas mais de 2,4 mil infecções e 57 mortes.
Isso vem causando medo e muita incerteza quanto ao que virá a seguir, mas esta não é a primeira pandemia na nossa história recente.
Há 11 anos, foi descoberto no México um novo vírus influenza que causa uma doença que viria a ser conhecida como gripe suína. Ele se espalhou em questão de meses para mais de uma centena de países, entre eles o Brasil, e provocou a primeira pandemia no século 21.
O desenrolar daqueles eventos pode não só ajudar a entender o que podemos esperar nos próximos meses, mas também compreender a real dimensão do que estamos vivendo.
Pandemia começou em porcos no México
Os registros históricos apontam que, desde o século 16, o mundo passou por ao menos três pandemias provocadas por vírus influenza a cada cem anos.
A maior delas foi a de gripe espanhola, com mais de 50 milhões de mortes no mundo entre 1918 e 1920. A última do século 20 havia sido a da gripe de Hong Kong, em 1968, com 1 milhão de vítimas fatais.
O mundo estava há quatro décadas sem enfrentar uma pandemia quando, em março de 2009, o governo mexicano foi informado do aumento do número de jovens adultos que sofriam de uma doença respiratória aguda. Em pouco tempo, casos foram também registrados nos Estados Unidos.
No mês seguinte, um novo subtipo do vírus influenza H1N1 foi identificado em amostras de pacientes coletadas nos dois países. Tratava-se de uma variedade inédita, surgida em animais e capaz de infectar humanos.
Os vírus influenza do grupo A, do qual o subtipo de H1N1 identificado em 2009 faz parte, sofrem mutações frequentes e produzem novas cepas contra as quais não temos imunidade.
Os coronavírus já demonstraram ter essa capacidade. Esta família de vírus é conhecida desde aos anos 1960 e circula em animais, principalmente morcegos.
Até agora, sabia-se que seis coronavírus eram capazes de sofrer mutações, saltar a barreira entre espécies e infectar pessoas — o novo coronavírus, batizado oficialmente como Sars-Cov-2, é o sétimo.
Até o momento, não se sabe exatamente qual animal foi o ponto de partida para a atual pandemia, mas, em 2009, porcos cumpriram essa função.
Estes animais têm receptores para vírus que infectam suínos, aves e humanos e são os hospedeiros ideais para que, em seu processo de multiplicação, essas variedades passem por uma recombinação genética e produzam um novo vírus que afeta humanos.
H1N1 se disseminou rapidamente pelo mundo
Para ser capaz de causar uma pandemia, como é chamada uma epidemia em escala global, um vírus precisa também conseguir se replicar em seres humanos, ser facilmente transmitido entre indivíduos da nossa espécie e causar uma doença grave.
Foi o que ocorreu com o novo subtipo de H1N1, que, quatro meses depois de ser descoberto, havia se disseminado pelo planeta em grande velocidade, por meio do sistema aéreo global, como ocorreu na pandemia atual, e chegado a mais de 120 países.
Em 11 de junho, a OMS declarou que o mundo enfrentava uma pandemia de gripe suína. Seu fim só seria anunciado pela agência 14 meses depois.
Estudos científicos estimam hoje que de 11% a 24% da população global na época — entre 700 milhões e 1,7 bilhão de pessoas — tenha contraído o novo vírus.
A princípio, a OMS apontou que cerca de 18 mil pessoas morreram por causa da gripe suína, mas, em um estudo posterior, reviu esse total para 200 mil.
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) calcula que esse número pode ter chegado a 545,4 mil no primeiro ano de circulação do novo subtipo de H1N1.
A OMS apontou em seu último relatório emitido durante aquela pandemia que 214 países e territórios registraram casos da gripe suína.
Com o Brasil, não foi diferente — e, como afirma o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, em um estudo realizado junto com outros cientistas brasileiros e publicado em 2009, o país foi “seriamente afetado”.
Reconhecimento da transmissão comunitária foi tardio
A OMS reconheceu rapidamente, no final de abril daquele ano, que o novo subtipo de H1N1 havia gerado uma situação de emergência de saúde pública de interesse internacional.
Isso levou o Brasil a criar um sistema de vigilância para casos de gripe suína. Seu alvo eram pessoas que apresentavam os sintomas da doença e haviam viajado ao exterior ou entrado em contato com pessoas com estas características.
Os sinais da gripe suína são bem semelhantes aos da covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, entre eles febre, tosse, dificuldade de respirar, além de dor de cabeça e na garganta, mal estar, dores no corpo e calafrios.
Os primeiros casos entre brasileiros foram confirmados no início de maio, em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, principalmente entre pessoas que haviam viajado aos Estados Unidos, à Argentina e ao Chile.
A princípio, era testado no Brasil para o novo H1N1 quem apresentava sintomas leves e graves, mas os exames passaram depois a ser aplicados apenas em quem tinha sintomas mais graves.
Essa mudança ocorreu quando a transmissão comunitária foi confirmada pelo governo federal, em meados de julho, um mês depois de a OMS ter declarado uma pandemia.
A transmissão comunitária é identificada quando um vírus passa a circular livremente entre a população e não é mais possível identificar como uma pessoa se infectou. Estudos apontam que a confirmação desse tipo de transmissão no Brasil foi feita com atraso em 2009.
Uma pesquisa realizada por cientistas do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) destaca que, quando isso ocorreu, já havia casos de mortes por gripe suína que não estavam relacionados a viajantes.
Outro trabalho de cientistas brasileiros, publicado no Caderno de Saúde Pública em 2012, aponta que esse tipo de disseminação já ocorria havia um mês antes de ser reconhecida oficialmente.
Isso “não gerou danos à população”, dizem os autores, “mas pode ter sobrecarregado as equipes envolvidas na resposta à epidemia já que elas ainda estavam dedicando esforços à busca e localização de casos em uma situação em que infecções já ocorriam em larga escala”.
Brasil teve mais de 53 mil casos
O total de casos cresceu exponencialmente no Brasil e atingiu seu pico na primeira semana de agosto, três meses depois do primeiro caso confirmado no país.
O número de novas infecções passou então a cair continuamente, mas se manteve em níveis significativos até o final de 2009 — e houve novos casos ao longo do ano seguinte.
O estudo do Instituto de Medicina Tropical da USP, feito com base nos dados do Ministério da Saúde, aponta que, em 2009 e 2010, foram notificados 105.054 casos no Brasil, dos quais 53.797 (51,2%) foram confirmados como sendo do novo subtipo de H1N1. Deste total de casos confirmados, 98,2% ocorreram em 2009.
Mas, como afirma um estudo liderado pelo médico Antonio Nassar Junior e publicado na Revista Brasileira de Terapia Intensiva em 2010, o número de casos foi provavelmente muito maior do que apontam os dados oficiais.
A pesquisa destaca que, como passaram a ser testados apenas os pacientes em estado grave a partir de dado momento, muitas pessoas com sintomas leves podem não ter sido diagnosticadas.
O Ministério da Saúde já informou que o mesmo ocorre agora e estima que 86% dos casos de covid-19 deixam de ser identificados, no Brasil e em outros países.
Paraná foi o Estado mais afetado no Brasil
Foram registrados casos em todos os Estados e no Distrito Federal, mas, as regiões Sul e Sudeste concentraram mais de 90% do total — na atual pandemia, o Sudeste concentra 57,9% dos casos confirmados no país e o Nordeste vem em segundo, com 15,8% dos casos.
Conforme destaca o estudo liderado pelo secretário Wanderson de Oliveira, as maiores taxas de incidência na população ocorreram “em cidades nas fronteiras com Argentina, Uruguai e Paraguai e nos Estados de clima temperado, onde o inverno é mais intenso”.
O Paraná foi o Estado brasileiro mais impactado na pandemia de gripe suína, enquanto, desta vez, São Paulo tem o maior número de casos de covid-19 até agora.
O primeiro caso foi identificado no Paraná em junho de 2009. Ao fim do ano, concentrava 58,6% de todas as infecções no Brasil — São Paulo foi o segundo Estado em termos absolutos, com 15,1% do total de casos confirmados naquele ano.
O Paraná também foi o Estado que teve em 2009 a maior proporção de casos em relação à população, com 301,3 casos a cada 100 mil habitantes, mais de dez vezes a média nacional, de 28 casos a cada 100 mil habitantes.
De acordo com este critério, os outros Estados mais afetados pela gripe suína no Brasil foram Santa Catarina (36/100 mil habitantes), Rio Grande do Sul (27,4/100 mil habitantes), Rio de Janeiro (20,1/100 mil habitantes) e São Paulo (19,7/100 mil habitantes).
Esse padrão mudou em 2010, quando passou a haver uma incidência maior de casos nos Estados mais ao norte do país.
Gripe suína foi mais comum entre pessoas mais jovens
Diferentemente da gripe sazonal, que costuma acometer mais idosos, a pandemia gripe suína ficou caracterizada por ter um número mais significativo de pacientes crianças, adolescentes e jovens adultos.
A idade média entre os casos confirmados no Brasil em 2009 foi de 24 anos, segundo a pesquisa do Instituto de Medicina Tropical da USP.
A faixa etária de 0 a 29 anos respondeu por 62,5% dos casos em 2009, enquanto aqueles com mais de 60 anos representaram apenas 4,8%.
Os idosos também tiveram o menor número de casos a cada 100 mil habitantes. As maiores taxas foram registradas entre crianças com menos de 1 ano, crianças entre 1 e 4 anos e adultos entre 20 e 29 anos.
Globalmente, estima-se que 80% das mortes relacionadas ao novo subtipo de H1N1 no mundo ocorreram em pessoas com menos de 65 anos de idade, de acordo com o CDC.
Isso é bem diferente do que ocorre com as epidemias de gripe sazonais, em que em pessoas com 65 anos ou mais são cerca de 70 a 90% das vítimas fatais.
“A gente sempre costumava cuidar de idosos com gripe, e, de repente, apareceu um novo vírus que causava doença grave em pessoas que a gente não esperava. Isso chamou muita atenção”, afirma o infectologista Benedito da Fonseca, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
Acredita-se que a menor prevalência da gripe suína entre idosos tenha sido relacionada a outras pandemias, diz a médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, do serviço de infectologia do Instituto Emílio Ribas.
“Esse vírus provavelmente não atingiu os idosos porque eles adquiriram alguma imunidade durante as crises da gripe asiática, em 1957, e da gripe de Hong Kong, em 1968. Seus corpos tinham alguma lembrança daqueles vírus pandêmicos”, diz Ribeiro.
O número de grávidas internadas por causa da gripe suína também foi bem significativo no Brasil e no restante do mundo.
“Muito provavelmente porque o sistema imunológico da gestante fica reduzido para que seu corpo não rejeite o feto, e ter imunidade comprometida é um fator de risco para o H1N1, porque permite que o vírus se multiplique mais rapidamente”, diz Fonseca.
Cientistas também apontam que uma maior atenção à saúde das gestantes durante o período da gravidez por ter contribuído para uma maior detecção do vírus entre elas.
H1N1 era menos transmissível que novo coronavírus
Assim como o novo coronavírus, o novo subtipo de H1N1 era transmitido por meio da tosse e de espirros, no contato direto com uma pessoa infectada ou ao entrar em contato com secreções respiratórias que carregavam o vírus.
Mas aquele vírus era menos transmissível do que o que enfrentamos hoje. A OMS aponta que uma pessoa com H1N1 era capaz de infectar de 1,2 a 1,6 pessoas. Um estudo divulgado pelo CDC aponta que essa taxa é de 2,79 para o novo coronavírus.
“Por ser altamente transmissível, estão sendo tomadas agora algumas medidas drásticas para impedir a infecção contra o novo coronavírus que não haviam sido aplicadas antes, como recomendar que as pessoas fiquem em casa e colocar cidades ou um país inteiro em quarentena. Isso não feito com o H1N1”, afirma Fonseca.
Após ser infectada pelo H1N1, uma pessoa apresentava sintomas depois de três a sete dias — esse período pode chegar a 14 dias com o Sars-Cov-2 —, e a grande maioria dos casos não apresentava complicações e evoluía para a cura, assim como tem ocorrido agora.
Assim como com o novo coronavírus, ter doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, problemas respiratórios, cardíacos e neurológicos e obesidade, é um fator de risco que aumentava as chances de ter uma forma grave da gripe suína e de morrer por causa dela. A presença deste tipo de condição foi observada em 79% entre casos hospitalizados no Brasil em 2009.
Apesar de serem menos vulneráveis ao vírus, as pessoas com mais de 60 anos tinham uma maior chance de ter quadro grave de gripe suína, por terem um sistema imunológico mais fraco. O mesmo ocorria com crianças com menos de 2 anos, que ainda não têm um sistema imune totalmente desenvolvido.
No Brasil, entre os 53.797 casos confirmados do novo H1N1 em 2009, houve 2.098 mortes, o que aponta para uma taxa de letalidade foi de 3,9%, de acordo com o estudo da USP.
Mas esse índice foi provavelmente superestimado, porque muitos casos leves deixaram de ser contabilizados nas estatísticas. Um estudo realizado pela Universidade de Washington e publicado em 2013 indica que este índice foi de 0,02%.
Especialistas afirma que o mesmo pode estar acontecendo nesta pandemia, porque muitos países dizem não ter testes suficientes para diagnosticar todos os casos e os aplicam somente aos mais graves.
Diante de um número significativo de pacientes assintomáticos ou com sintomas leves de covid-19 que não estariam sendo detectados pelos sistemas de vigilância, a taxa de letalidade do novo coronavírus, de 3,4% de acordo com a OMS, estaria bem acima da realidade.
Medicamento e vacina
Um fator fundamental para o baixo índice de mortes em relação ao número de pessoas infectadas durante a pandemia de H1N1 foi o fato de haver na época medicamentos antivirais capazes de combater aquele vírus.
Até o momento, não há uma droga que seja comprovadamente capaz de fazer o mesmo com os pacientes infectados pelo novo coronavírus.
Outro elemento que contribuiu para controlar a disseminação do novo subtipo de H1N1 foi o desenvolvimento de uma vacina ainda em 2009.
Isso foi possível porque já havia uma vacina contra outros vírus influenza, e foi uma questão de adaptar o que existia para criar uma versão capaz de conferir imunidade contra aquela variedade do H1N1.
No entanto, como aponta o CDC, esta vacina só se tornou amplamente disponível a partir de novembro daquele ano, quando o número de novos casos havia caído drasticamente em todo o mundo.
A vacina teve um papel mais importante no controle da pandemia a partir de 2010, o que permitiu à OMS declarar seu fim em agosto daquele ano.
E também na proteção da população em relação a novas versões desse subtipo de H1N1 desde então — a vacina que está sendo oferecida no Brasil neste ano, por exemplo, confere imunidade contra ele.
“Mesmo que a vacina não seja totalmente eficaz — ela protege em 70% das aplicações —, se você consegue uma boa cobertura da população, especialmente nos grupos de risco, consegue diminuir a chance das pessoas se infectarem”, afirma Fonseca.
A pesquisa de uma vacina contra o Sars-Cov-2 vem avançando rapidamente, e há mais de 20 versões em desenvolvimento. Mas ainda é preciso garantir que funcionam e são seguras.
Mesmo que alguma delas se prove eficaz, será preciso encontrar formas de produzi-la em massa. Com isso, as previsões mais realistas apontam que uma vacina para o Sars-Cov-2 não estará pronta para ser aplicada na população ao menos até meados do próximo ano.
Pandemia deixou lições
Fonseca diz que um dos grandes legados da pandemia de H1N1 foi o aprendizado de como lidar com epidemias de gripe nos tempos atuais.
O infectologista diz que isso permitiu conter a disseminação de outros vírus influenza que geraram epidemias localizadas na Ásia, mas não se espalharam pelo mundo.
“O grande problema do que aconteceu agora é que este é vírus diferente e totalmente novo que ninguém sabe muito bem como conter nem conhecemos todas as formas como ele pode ser transmitido”, afirma Fonseca.
Por esse motivo, aprender com o que está ocorrendo agora será fundamental para lidar com as próximas pandemias que provavelmente virão.
“Estamos cada vez mais sujeitos a isso porque estamos invadindo a natureza e entrando em contato com animais que hospedam vírus desconhecidos, e as pessoas se deslocam mais pelo mundo e muito mais rápido”, afirma Fonseca.
“Então, hoje, o perigo de pandemias é iminente.”
(BBC Brasil)