Cobertura da mídia sobre feminicídio é inapropriada, mostra relatório
No Brasil, a cobertura midiática de casos de feminicídio e violência sexual carece de aprimoramento. A avaliação é da jornalista Luciana Araújo e consta no relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual. Segundo a jornalista, na maioria das vezes em que os crimes são noticiados, os veículos de comunicação não humanizam as vítimas, tampouco colaboram para que a sociedade compreenda mais sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e sobre como o ciclo de violência pode ser rompido.
A publicação, do Instituto Patrícia Galvão, analisou textos publicados em 71 veículos de comunicação das cinco regiões do país. Ao todo foram 1.583 matérias sobre homicídios de mulheres e 478 sobre crimes de estupro.
A análise mostra que as matérias jornalísticas não contêm uma contextualização complementar e deixam de informar, por exemplo, se as vítimas já haviam procurado o Estado para pedir proteção. Além disso, o relatório diz que os jornalistas têm contribuído para culpabilizar as vítimas, fazendo um movimento contrário ao recomendado. Isso acontece quando citam que os agressores estavam “fora de si”, “transtornados” ou “sob efeito de álcool” no momento do crime.
A publicação revela também que uma parcela dos repórteres menciona que os agressores cometem o crime “em defesa da honra”. Quando a ocorrência é relacionada a estupro, o discurso é de que as vítimas provocaram a situação, ao exercer sua sexualidade ou ter um comportamento considerado inadequado para uma mulher.
*Estrutura das reportagens
Luciana afirma que toda matéria jornalística deve conter, necessariamente, informações sobre os serviços públicos disponíveis para as vítimas, como atendimento de saúde e em delegacias especializadas. Outro aspecto que classifica como imprescindível é a divulgação sobre como as mulheres podem reconhecer a violência de gênero, isto é, quais atitudes configuram esse tipo de crime. Ambas orientações, frisa ela, podem salvar vidas.
A comunicadora defende, ainda, a inclusão do tema direitos humanos na formação dos jornalistas, para que os profissionais tenham melhor entendimento sobre violência de gênero. “É um déficit importante na nossa formação”, diz.
Para ela, mesmo com a correria do dia a dia, os jornalistas têm de se esforçar para sair da redação para a cobertura já dominando noções básicas, como os itens preconizados na legislação. Assim, evitariam a banalização de mulheres, ao deixar de noticiar qualquer morte de mulher relacionada à sua condição de mulher – caso da violência doméstica ou em crimes nos quais evidência de ódio ao ser mulher – como feminicídio.
Outro ponto que Luciana defende é que os profissionais de imprensa estejam atentos a expressões que possam desqualificar a palavra da vítima. Quando a mulher relata um episódio de violência, escrever algo como “a vítima diz que foi agredida” significa gerar desconfiança sobre sua versão dos fatos.
“Se uma matéria aborda que a mulher denunciou uma tentativa de feminicídio ou estupro, [deve-se] trocar o ‘diz que’. A gente é um país que tem um ditado popular que é o ‘diz que diz que’. A gente [deve] trocar o ‘diz que foi estuprada’, ‘diz que foi violentada’, por ‘relata'”, sugere.
“Particularmente no caso de estupro, é uma violência muito ocultada, porque ela costuma não ter testemunhas. Não é uma violência que necessariamente deixa marcas físicas que sejam facilmente identificáveis. Então, tornar aquele relato um relato não questionado de pronto é importante, porque o volume de casos em que há denúncia falsa é tao pequeno, ínfimo, insignificante do ponto de vista das estatísticas, ao contrário das denúncias não feitas. Os estudos nacionais e internacionais apontam que os estupros registrados são de cerca de 10% a, no máximo, 35% [do total de ocorrências], no mundo. As mulheres têm vergonha, têm medo”, explica.
*Exposição e mulheres transexuais
Luciana diz também que é papel do jornalista cobrar atuação do Estado, “algo fundamental na profissão”. Ela esclarece que o repórter precisa compreender e destacar o contexto onde a vítima vivia, informando se existe uma rede de apoio na região onde a vítima mora ou morava, como delegacias ou hospitais.
“É uma série de questões que pode abordar jornalisticamente, sem nenhum juízo de valor, sem, vamos dizer, tomar partido, para cobrar que o Estado faça o que é função dele fazer. Porque uma outra questão importante é que, muitas vezes, na maioria dos casos, tanto a violência sexual como o feminicídio, são em decorrência de ação ou omissão do Estado, seja pelas políticas públicas não asseguradas, seja por uma educação que não prevê a perspectiva de respeito aos direitos do outro, seja, efetivamente, por um caso em que o próprio agente do Estado foi o autor daquela morte.”
O relatório condena a exposição das vítimas, algo que considera grave e que tem sido prática de parte da imprensa. Ao todo, em 15% das matérias analisadas que continham imagens de vítimas, houve exibição de corpos sem qualquer tratamento de edição. Essa violação de direito ocorreu em maior número entre vítimas negras.
A versão integral da publicação pode ser acessada pela internet. A iniciativa teve apoio da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
(Agência Brasil)