A surpreendente relativização dos direitos fundamentais frente ao Covid-19
Aqueles que nasceram no Brasil após o advento da Constituição de 1988 ou que eram crianças naquele ano acostumaram-se, como regra, as garantias fundamentais asseguradas pela Constituição da República.
A surpreendente relativização dos direitos fundamentais frente ao Covid-19
Aqueles que nasceram no Brasil após o advento da Constituição de 1988 ou que eram crianças naquele ano acostumaram-se, como regra, as garantias fundamentais asseguradas pela Constituição da República.
Desta forma, todos experimentamos a experiência de expressar livremente as opiniões, ter livre direito de locomoção, respeitar o direito de reunião, bem como os demais direitos individuais, e as cláusulas pétreas previstas na Carta Constitucional.
Essas cláusulas pétreas, concentram-se, especialmente no art. 5º da Constituição, embora o STF reconheça que esses direitos estejam presentes em diversos pontos do texto legal. Assim, a maioria dos juristas reconhecem que estes direitos são imutáveis espalhados na Constituição, em especial aqueles descritos no Artigo 60, §4º.
Portanto, é vedado ao Poder Constituinte derivado ou reformador projetos de emenda tendentes a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes e; IV – os direitos e garantias individuais.
Isto posto, eis o surgimento da pandemia causada pelo Covid-19 e depois disso a edição de textos legais que direta ou indiretamente atentam contra essas garantias constitucionais sob a premissa que um outro direito constitucional, expresso no art.6º da Constituição garante o direito à saúde em detrimento dos direitos individuais.
Temos aí verdadeira colisão de direitos fundamentais, e segundo o jurista Robert Alexy, autoridade no estudo do tema, resta saber qual será a norma de maior densidade para a solução do conflito de normas.
Ocorre que diversos textos legais, tanto aqueles publicados nos Municípios, Estados da Federação, quanto de ordem federal, são ferramentas que tem como fundamento garantir o direito constitucional à saúde coletiva. Essencialmente o objetivo das autoridades é viabilizar o atendimento hospitalar das vítimas do Covid-19.
Nesse sentido, tornou-se comum na pandemia a abordagem, multas e até mesmo prisão de pessoas que se recusam a deixar ambientes públicos, com fundamento e determinações municipais quanto de legislação estadual, de constitucionalidade questionável e de grande polêmica.
O mesmo problema ocorre com direito de reunião garantido pelo art. 5º, inciso XVI, da Constituição Federal. Segundo a norma, todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.
Qualificamos como perigoso garantir como absoluto o direito de reunião, não por um suposto caráter subversivo dos tempos da ditadura, mas pelo aspecto exclusivo de facilitador do contágio.
Ainda temos as restrições impostas ao direito de ir e vir que estão limitadas em prejuízo a garantia expressa no artigo art. 5º, inciso XV, que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz”.
Não podemos descurar da máxima do Estado Liberal Democrático sobre o direito de propriedade, indiretamente atingido quando o estado restringe o direito ao livre comércio, ao uso, disposição, gozo e reivindicação de uma propriedade, seja um negócio, seja um bem imóvel alugado.
E o que não dizer do notório do artigo 5º, inciso , XXXVI: “ a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, e a consagração no artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Art. 6º: A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.”
Vivenciamos atualmente a existência de decretos, medidas provisórias, projetos de lei que relativizam o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, uma vez que declaram moratórias, prorrogações, descontos em contrato, flexibilização de pagamento em execuções e transações judiciais e extrajudiciais, em uma profusão legislativa inimaginável em tempos de normalidade. Praticamente vivemos uma suspensão relativa das garantias individuais, sendo certo que o Poder Judiciário deverá estar atento para o surgimento de abusos em todas as esferas da federação.
Destacamos, ainda, as medidas de ordem trabalhista que vão desde a redução de salário e redução de jornada, mas que deve ser aplicada com a respectiva contrapartida da garantia da estabilidade no emprego, o que não pode ser esquecido na aplicação do que é aceito pelo artigo 7º, Inciso VI da Constituição de 1988, que preceitua a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.
Sobre esse fato a decisão do Ministro Ricardo Lewandowski que acordos de redução só serão válidos após manifestação de sindicatos, que apenas seguiu determinação constitucional, causou reclamações de setores políticos e empresariais, que não atentaram para o detalhe que a determinação é de mera comunicação ao sindicato, passível de futura discussão coletiva. Com isso, nada impede o empregador de reduzir salários e jornada, mas com garantia de emprego. Futuramente terá sua decisão certamente validada pelo Judiciário que reconhecerá a força maior e a boa-fé contratual. Celeumas sobre isso é de ordem politica e sem importância prática.
Por fim, na pandemia é noticiada a existência de telefones para denuncias de aglomerações de ordem macartista e estranhamento com as garantias constitucionais que podem significar também obscuros interesses políticos.
São momentos de exceção ao perfeito andamento do Estado Democrático de Direito. Um duro teste de nossas instituições e uma experiência importante para todos que prezam pela democracia e liberdades garantidas por esta.