MATERNIDADE NA QUARENTENA | As protagonistas do parto humanizado e a medicalização do ato de parir
Por Maria Barretto
É preciso respeitar as escolhas das mulheres sobre como querem trazer seus filhos ao mundo. A medicalização do parto tirou parcialmente nossa força, a intimidade e confiança que todas deveríamos ter em nosso corpo e no processo do nascimento. Claro que os médicos são fundamentais e salvam vidas de mães e bebês todos os dias, mas parir não é um procedimento de risco nem de emergência na maior parte dos casos. É um acontecimento natural, ouso dizer um ato sexual. A potência necessária para que ele se realize vem de dentro, da mulher selvagem. Precisamos resgatar essa sabedoria e limpar o medo que acompanha a palavra “parir”. Dados recentes do Ministério da Saúde revelam que temos 64 óbitos de mães para cada 100 mil nascidos vivos: mais que o dobro da meta estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 30 para cada 100 mil. Sinto é esse é um alerta! Mas, ao mesmo tempo, uma oportunidade para revermos como as mães estão se cuidando e sendo cuidadas, antes, durante e após o parto.
Sou mãe de três filhos e passei por experiências diversas de gestação, parto e puerpério. Em meu trabalho com mulheres, acompanhei muitas se tornarem mãe pela primeira vez ou ressignificarem essa experiência. Por isso, aproveito o momento para compartilhar o que aprendi e venho aprendendo sobre o nascimento no qual acredito – e que é um tanto diferente do que se tornou a regra em nosso país. Desde que minha primeira filha nasceu, dez anos atrás, optei de maneira muito consciente por ter um parto natural em casa, sem intervenções. Mas, foi somente na terceira experiência de me tornar mãe que consegui realizar esse desejo da forma planejada. Ainda que haja polêmicas e medos envolvendo essa escolha, há diversos estudos científicos que mostram que um parto domiciliar planejado não apresenta maior perigo para mães e bebês – caso nenhum risco seja identificado durante a gestação e que haja assistência adequada.
Na primeira gestação, mergulhei em todos os conhecimentos disponíveis sobre o assunto. Busquei me planejar e me conhecer. Criei uma rede de apoio que incluía meu marido, minha parteira, além de uma obstetra e uma obstetriz. Sabendo que a minha família não nos apoiaria nessa decisão, no dia em que comecei a sentir as contrações decidimos deixar fluir sem avisar ninguém. Mas, durante o trabalho de parto, minha mãe apareceu em minha casa de surpresa e a reação dela foi um gatilho para emoções que dificultaram a conexão com o momento – algo que hoje sei ser fundamental. Conversamos e eu pedi que ela respeitasse nossa escolha, mas ficamos desestabilizados. Após algumas horas sem evolução, a médica recomendou que fôssemos para o hospital. Foram quase cinco horas até que eu entrasse novamente na “partolândia” e meu corpo se abrisse para dar passagem à Tereza. Ela nasceu de forma muito linda e respeitosa, mas não exatamente como eu havia planejado.
Na segunda gestação, não houve planejamento algum. O Conselho Regional de Medicina estava cassando o registro dos obstetras que atendessem em casa e eu resisti a criar alternativas. No dia em que comecei a sentir as contrações, ainda tentei de última hora ligar para obstetras conhecidos e pedir que viessem à minha casa. Sem sucesso, claro. Quando a bolsa estourou, meu marido sugeriu irmos ao hospital. Entrei no carro a contragosto. Chegando ao hospital, todos os quartos estavam lotados e tivemos que ficar em uma sala pré-parto, onde teoricamente as pacientes não podiam dar à luz. Minha raiva e intensidade era tanta que foi ali mesmo onde José nasceu, também de parto natural, mas com uma sensação totalmente diferente ao anterior, devido ao caos das circunstâncias. Foi esse também o meu puerpério mais desafiador, como relato em O Pequeno Livro do Puerpério.
Mais madura com as experiências anteriores, foi na terceira gestação que senti meus planos se integrando. Novamente, muito planejamento. Eu e meu marido em sintonia, desta vez nossa família nos respeitando e confiando em nossas escolhas. Convoquei minha parteira e ninguém mais. Havia um médico de plantão, caso eu apresentasse algum risco e precisássemos de uma intervenção emergencial, o chamado plano B. Então, Ana veio ao mundo exatamente como eu queria. Em nosso lar, com a parteira ao meu lado, dando todo o suporte de uma figura feminina acolhedora e me empoderando das minhas próprias forças. Meu marido presente, inteiro. Além deles, minha filha mais velha, minha irmã, uma grande amiga e a Nil – meu anjo da guarda –, quatro mulheres fortes que sempre me apoiaram. Foi desse último parto que vieram minhas sabedorias mais importantes, que procuro disseminar hoje. A reflexão mais importante é que a mulher precisa ser protagonista desse momento.
Toda mulher tem direito à escolha informada e consciente. Ela deve decidir em que condições se sentirá mais segura para dar à luz. Qualquer tipo de parto – seja o natural, normal ou cesárea –, carrega um histórico de expectativas, medos e inseguranças para os futuros pais, que devem buscar informação sobre cada uma das possibilidades para que possam decidir o que faz mais sentido para suas crenças e contexto. Acompanhei certa vez uma paciente que me relatou que após muito pesquisar e ouvir outras experiências, optou pelo parto cesárea. Apesar de eu ter feito outras escolhas para mim, sabia que ela estava segura e consciente da sua, portanto não cabia a mim questioná-la.
Um outro aspecto fundamental é a preparação, especialmente para quem deseja o parto natural. Assim como não dá para correr uma maratona sem treinar, é muito difícil dar à luz sem ter corpo e mente preparados. Do ponto de vista físico, a mulher precisa buscar consciência corporal e treinar os músculos que serão usados na expulsão do bebê. Emocionalmente, cada uma pode fazer o que chamo de limpeza interna. O parto é um momento de ressignificação, portanto crenças e traumas devem ser trabalhados para que os medos e pesos que carregamos não limitem a abertura para a experiência.
A escolha de quem vai acompanhar essa preparação e o nascimento também é essencial. São pessoas que devem nos deixar seguras da nossa potência. Depois de três partos, tenho certeza de que o corpo sabe o que fazer. Apenas necessitamos de pessoas inteiramente dedicadas a nós, na mesma proporção que estamos dedicadas ao momento. É um cuidado sem intervenção, de facilitação, que deixa a mulher mãe ser a protagonista. Penso muito na sororidade e o quanto precisamos resgatá-la. A força de ter mulheres unidas que em vez de competirem entre si consigam juntar suas potências. Úteros em conexão. Como diz a doutora Maya Tiwari – referência em Ayurveda – é nos círculos de mulheres que formamos uma rede vibratória que mantém toda e qualquer mulher em nosso planeta em consolo. Nesses círculos visíveis e invisíveis, cantamos para os momentos felizes e afugentamos a dor, a angústia, o imperdoável.
Por fim, o ambiente escolhido para o parto deve ser tão acolhedor quanto as pessoas presentes no momento. Seja em sua própria casa, em casas de partos ou no hospital, para parir precisamos acessar o nosso lado mais instintivo. Desligar nosso neocórtex, a parte mais racional do cérebro. Qualquer ação que cause ruídos nessa entrega deve ser minimizada, como luzes, barulho e perguntas sobre a documentação dos pais. Esses estímulos atrapalham a “partolândia” e o estado sutil, profundo e de conexão no qual a mulher precisa entrar para abrir passagem para o bebê.
A minha contribuição é lembrar que as mulheres são sábias e guardam dentro de si uma força que muitas vezes desconhecem. Se queremos mudar a realidade do parto no Brasil e no mundo, precisamos com urgência relembrar a nossa potência e termos novamente a permissão para ocupar nosso lugar de protagonismo.