Já Virou Novela
Diz-se que “já virou novela” uma história que se arrasta, longa, cheia de reviravoltas, típicas do gênero televisivo que, obrigado a uma programação diária de vários meses, precisa se prolongar, muitas vezes, desviando do foco e até se perdendo dentro de sua narrativa que, salvo raras exceções, é carregada de clichês, que todo mundo que já viu meia dúzia de novelas na vida é capaz de identificar.
Como (pretenso) escritor, sei que os clichês são válidos, por vezes tentadores e, diria, até necessários em alguns momentos, principalmente em uma trama que busca se fazer popular e sem grandes inovações como os folhetins televisivos, mas acho que todos concordam que há situações recorrentes que “já deu” né?
Por exemplo, a gravidez inesperada de determinada personagem, que em 99% dos casos é descoberta com enjoos e vômitos, entre outros sintomas. Então né, estamos em 2019, é sério que ninguém usa camisinha ou toma anticoncepcional nas novelas? Poxa, não dá mais né? Claro que poderia ser usado nas histórias como exceções, mas até personagens “descoladas”, muito bem informadas, caem nesse golpe da barriga.
Mas o inesperado não é o único problema que ronda gravidez em novela, ambiente em que também são comuns as vilãs que decidem engravidar do mocinho para… bom, não importa para quê, a estratégia sempre é parecida. Engana o rapaz ou, nos casos mais extremos, apela para a velha técnica de drogar o moçoilo e se deitar com ele, muitas vezes armando uma cena para que a pobre e pura heroína os encontre. Vergonha alheia é pouca para descrever esse tipo de resolução nas histórias. Também vale destacar que muitas vezes a antagonista inicia a novela como par romântico do protagonista (ou vice-versa), o que sempre faz quem assiste se perguntar “mas como esse casal convivia, porque o cara (ou a mulher) legal e exemplar namorava um(a) babaca completo(a)?”.
Pois é. E nem vou entrar no mérito dos casamentos e nascimentos de filhos do último capítulo, geralmente depois de uma ação extrema e desesperada do vilão, quase sempre incluindo um sequestro de alguém, em planos que nem Dick Vigarista assumiria a autoria.
Alguns clichês, claro, são na verdade maneirismos que já deveriam ter sido abolidos, dada a sua falta de verossimilhança. Por exemplo, é comum quando alguém encontra outra pessoa de surpresa chamá-la pelo nome, demonstrando seu espanto. “Helena?”. Sim, muito comum apenas nas novelas, já que na vida real as pesquisas (nunca realizadas) mostram que isso ocorre em zero por cento dos casos. Sim, admite, quando foi que você ou alguém que conheça fez isso?
Situação pavorosa acontece também quando alguém sai e logo em seguida a campainha toca. A pessoa que ficou dentro da casa sempre atende dizendo algo como “esqueceu alguma coisa?”, apenas para ser surpreendida com uma visita inesperada. Bom, não sei como são as cidades cenográficas em que essas pessoas vivem, mas nas reais que eu conheço, as casas tem portão, campainha, interfone, portaria (no caso de condomínios, cada vez mais comuns) e uma pessoa bater à sua porta de surpresa só seria possível se ela fosse seu vizinho de apartamento, por exemplo (o que nunca é o caso).
Enfim, como já ressaltei, entendo perfeitamente a dificuldade dos autores em produzir uma atração de cerca de 45 minutos diários, com dezenas de personagens, tendo de lidar com percursos pelo caminho, que incluem mudança de rumos na história de acordo com a repercussão pública, por exemplo, e mantendo o interesse e a coerência por todos os meses em que a trama se desenrola. Sério, entendo mesmo. Mas não há dúvida de que alguns clichês, situações e saídas de roteiro, há muito tempo que já “viraram novela”.