É coisa de menino
Quando era criança, lembro de um primo, que tem a mesma idade que eu, me perguntando se eu era “mulherzinha”. Eu não entendi o motivo, a princípio, até que ele me explicou que era pela forma que eu estava sentado, com as pernas cruzadas, que era jeito de mulher sentar. Naquele dia ele me disse também como os homens devem se sentar, cruzando a perna com a canela apoiada na coxa. E foi como passei a me sentar desde então, do “jeito de homem”. Por conta disso, também passei anos achando que o Silvio Santos fosse mulher.
Esse é apenas um dos exemplos das inúmeras vezes que me disseram que tal coisa não era coisa de menino/homem ou que aquilo era coisa de menina/mulher, algo que passamos a vida ouvindo, interpretando, repetindo e ensinando. Mas o que exatamente seriam essas tais coisas de um ou do outro? Já descobri que sentar de pernas cruzadas não é, Silvio Santos me mostrou isso. Talvez seja gestar uma criança, afinal, nós homens não temos útero, então, sim, gravidez é coisa de mulher, exclusiva.
Fora algumas questões biológicas, no entanto, muitas das coisas que cresci ouvindo se revelaram mitos bobos com o tempo, a começar na infância mesmo. Homem pode brincar de coisas legais como carrinho, polícia e ladrão, ninja, astronauta, super-herói, cavaleiro. Os brinquedos então, são os mais divertidos e imaginativos. Para as gurias, por outro lado, sobra o papel de princesa ou, o que considero mais trágico, treinamento para ser adulta. Fala sério, como pode ser divertido brincar de fazer comida, arrumar a casa, trocar fralda? Claro, não sou menina, então não sei, nunca me determinaram brincar dessas coisas quando criança, o que é muito bom, mas seria profundamente frustrante caso eu quisesse. Por essa lógico, imagino como se sentiram muitas meninas que, ao invés de casinha, queriam salvar o mundo. Ou explodi-lo, isso também era divertido na infância.
No entanto, se na infância eu surfei na crista da onda (aposto que essa expressão eu retirei lá dessa época, aliás), na adolescência as coisas foram menos tranquilas. Isso porque sempre gostei de escrever e entre uma história fantástica e outra, gostava de anotar bobeiras sobre o dia, sobre meu cotidiano, minha vida. E no momento que isso ficou parecendo com um diário, se tornou perigosamente arriscado comentar com alguém. Ainda bem que continuei escrevendo minhas besteiras inúteis em segredo, o que se revelou importante para formar as bases do meu estilo crônico no futuro. Me pergunto se Nelson Rodrigues tinha um diário na adolescência.
Mas o amadurecimento e a libertação só vieram mesmo na fase adulta, quando descobri que mulher pode (e deve) jogar futebol se ela quiser, assim como qualquer outro esporte. Mas também, se tiver vontade, pode dançar ou ser dona de casa. E que o homem também pode dançar, jogar, e ser “do lar” não é ajuda benevolente que o marido dá para a esposa, já que cuidar da casa, dos filhos e da família, é obrigação tanto de um quanto de outro.
Aprendi que a mulher pode escrever e o homem pode ver novela. Que ela pode gostar dos filmes do James Bond (mesmo que eles, historicamente, objetifiquem as mulheres), tomar cerveja, falar palavrão e ter o maior salário; enquanto que ele pode chorar vendo uma comédia romântica, ser o cozinheiro da casa e ir nas reuniões dos filhos na escola.
Aprendi, enfim, que a maioria das coisas de meninos ou meninas foram inventadas por nós mesmos através do tempo e vêm da época em que o macho saía para caçar e a fêmea ficava com a casa e as crias. No entanto, segundo um estudo publicado no periódico Nature, em pelo menos duas espécies de hominídeos primitivos, o que acontecia era o oposto, com a fêmea saindo para caçar.
Ou seja, em alguns casos, alguns Australopitecos talvez já fossem muito mais evoluídos do que nós.