As pupilas olfativas do amor
Já me disseram que não se deve confiar em quem não gosta de cheiro de café ou de pipoca de cinema. Não precisa nem ser um apreciador da bebida preta ou dos milhos estourados, isso é aceitável, mas renegar o aroma, aí já é coisa de psicopata.
Acredito que a teoria também valha para pão fresquinho, bolo saindo do forno, pão de queijo quentinho, pastel frito na hora e, no meu caso, para Dama-da-noite (a flor).
No entanto, apesar disso, é possível encontrar pessoas que não se encantem com esses cheiros ou, até (Deus me “drible”) tenham aversão a eles. Heresia? Talvez. Ou, pode ser que a resposta seja mais complicada (envolvendo magias poderosas e maldições antigas?). Não, nada disso, não tão complexo assim, mas algo que apelidei de “Papilas olfativas do amor”.
Explico: é bem verdade que nossa memória é fator importante para determinar muitas coisas em nossas vidas. Eu, por exemplo, gosto muito da minha, que não é nada acima do normal, a ponto de eu me lembrar da escalação da Seleção Holandesa de 1978, mas sempre me ajudou a tirar boas notas nas provas e também é grande auxílio na hora de escrever, me trazendo referências de uma história em quadrinhos obscura que li em algum momento da vida ou da letra daquela canção que quase ninguém ouviu ou, ainda, uma citação tosca de uma série que só eu gostei.
E por que isso tem alguma relevância com o assunto? Bom, é porque, citando uma ótima reportagem da revista Superinteressante, datada de 1987 e assinada por Lucia Helena de Oliveira, “qualquer cheiro é suficiente para despertar fome, provocar atração ou repulsa, trazer de volta cenas do passado. Cheirar é se emocionar sempre. Mas na maioria das vezes isso é tão sutil que não se dá importância e se acaba torcendo o nariz para o olfato — o mais primitivo e intrigante dos sentidos, e com certeza o menos conhecido pela ciência. Poucos percebem que, num mundo onde quase tudo tem odor, é esse sentido que decifra as mensagens químicas — das quais frequentemente depende a própria sobrevivência — passadas pelos animais, vegetais, minerais e objetos manufaturados. Além disso, é graças ao olfato, um aliado do paladar, que se sentem as diferenças de sabores, o que faz toda a diferença quando se está resfriado”.
Ou seja, nossa vida, está cheia de reações que são provocadas pelo aroma que sentimos. Por isso, por exemplo, o cheiro de graxa me traz um certo conforto, do período em que trabalhei, ainda adolescente, em uma bicicletaria ou, ainda, da época em que meu pai mantinha um torno em um posto de molas de caminhão e foi justamente onde aprendi a andar de bicicleta pela primeira vez – e sim, a expressão é essa, porque depois tive de aprender a andar “pela segunda vez”, logo depois de me gabar e terminar jogado no mato após me chocar contra a guia.
Por isso também, o cheiro de Dama-da-noite me seja tão reconfortante, já que era uma flor que espalhava seu perfume que nos inebriava nas ruas do bairro onde cresci durantes as brincadeiras noturnas ou as conversas na calçada com meus amigos de infância.
E acho que, também por isso, uma amiga me confidenciou certa vez que gostava do cheiro de chulé (eca!), já que isso a lembrava do pai na infância – o que é por demais estranho e lógico ao mesmo tempo, já que o fedor está ligado a bons momentos do passado.
Assim, mais do que nos provocar sensações, o olfato, mesmo em situações bizarras, é capaz de nos guiar por caminhos inesperados e intrigantes. E graças à nossas pupilas olfativas, às vezes é possível, mesmo de olhos fechados, experimentar sensações de prazer, afeto, conforto e do mais puro amor.
Ou pode ser só vontade de comer aquela coxinha de queijo deliciosa mesmo.