Não confie em ninguém com dentes
Minha boca tem mais canais do que a TV aberta. Um desses, malfeito há mais de 15 anos, me custou dois dentes e uma dor muito maior do que as anestesias que foram aplicadas na época – lembro-me que foram quatro até o “dentista” concluir que não daria para fazer o serviço. Um erro duplo, considerando que odeio anestesia e, na minha dentista regular, detenho orgulhosamente o recorde de maior tempo realizando um canal sem a famigerada.
Mas como todo azar é pouco para quem tem 32 dentes – o que não é o meu caso, já que tenho pelo menos dois faltantes – na última consulta ainda descobri um problema com um dos poucos dentes que ainda não tem canal. É como se ele tivesse ficado com inveja dos amiguinhos. “Também quero ter canal, receber um tratamento doloroso e que custa muito dinheiro. Êêêêê”. Maldito “Maria-vai-com-as-outras”.
Já eu tenho inveja mesmo de americanos e europeus, que ao invés de uma picada de agulha na gengiva, inalam óxido nitroso (o popular gás do riso), que além de anestesiar de forma mais agradável, ainda tem efeitos como relaxamento e até a vontade de rir – o que no caso, pode ser um problema se tiver uma broca giratória dentro da boca. Enfim, assim, não desconfio que muitos gringos até gostem de ir ao dentista para “curtir um barato”.
Já por aqui, tratar da saúde odontológica é o medo de 11 em cada 10 pessoas – sim, estou incluindo o próprio dentista na conta. O barulhinho característico da broca provoca pesadelos maiores do que o tema de filmes de terror e o consultório, embora sempre branco, limpo e asseado, costuma nos remeter a ambientes de salas de tortura, do tipo que fariam até Christian Grey broxar. Acha exagero? Pode ser, mas sabia que existe uma matéria no curso de odontologia específica para ensinar os futuros profissionais a identificar e lidar com pacientes que têm medo de dentista? E que até o século 18 as pessoas eram amarradas às cadeiras durante o tratamento, para evitar que fugissem ou atacassem o dentista acidentes? Se bem que isso, provavelmente, era na mesma época em que o tratamento era feito pelo barbeiro (e não um carrasco, como eu pensava) – e me pergunto se ele usava creme de barbear ou realizava os procedimentos cantando Fígaro, que segundo o Pica-Pau e o Pernalonga, é o tema musical preferido desses profissionais.
Mas a nossa dentição, por si só, já é uma prova de que Deus tem senso de humor. Primeiro porque os dentes nos são dados por duas vezes e, se precisar mais do que isso, tem de comprar. O Todo Poderoso deve ter se divertido programando que o nascimento dos dentes seguiria a teoria do caos, com eles crescendo desordenadamente para o lado em que desejarem – falo por experiência, minha arcada dentária é multidirecional. Ainda que usei aparelho por muito tempo, desde o mais simples, que dá para customizar com borrachinhas coloridas, até o tal do “expansor”, que é um ferro colocado no céu da boca para fazer o que o nome diz (expandir), enquanto te deixa com um agradável paladar de metal. Também é ótimo para comer salada.
Li também que entre as condições que se transformam em problemas dentários, está o bruxismo, que nada tem a ver com o movimento de inquisição que queimava mulheres na fogueira na Idade Média, mas sim com o ato de ranger os dentes durante o sono e que afeta 30% da população mundial – 40% no Brasil, segundo matéria da BBC, que diz ainda que muitas pessoas sequer sabem sofrer disso, o que faz sentido, já que estão dormindo quando acontece.
Enfim, talvez por todas essas coisas, os dentes sejam a parte mais dura do corpo humano, mais até que os ossos. Com exceção dos dentistas, neles, sem dúvida, é o coração, afinal, só assim para suportar uma pessoa se contorcendo em constante agonia na cadeira enquanto ele pergunta tranquilamente como vai a família, o trabalho e as séries da Netflix.