Como funciona o teto de gastos e por que ele voltou a gerar polêmica
A discussão em torno do teto dos gatos – regra de 2016 que criou mecanismos de limitação ao crescimento das despesas do governo federal – voltou a se acirrar nas últimas semanas, enquanto o país sofre uma das piores recessões de sua história em meio ao avanço da pandemia de coronavírus.
O debate ficou especialmente acalorado e até fez piorar o desempenho da bolsa de valores depois que o presidente Jair Bolsonaro sugeriu que a ideia de descumprir a regra não era algo totalmente fora do radar.
A repercussão imediatamente negativa forçou o presidente a voltar a público para reforçar o compromisso tanto com o teto quanto com seu ministro da Economia, Paulo Guedes, o estandarte do rigor fiscal que ainda mantém o casamento entre governo Bolsonaro e mercado financeiro de pé.
De um lado do debate, está a calamitosa situação das contas públicas, base do argumento pela defesa do controle: há anos o governo gasta mais do que arrecada e o Brasil já tem uma das maiores dívidas entre os principais países emergentes.
Do outro lado, a recessão profunda causada pela pandemia acentuou a demanda por mais gastos no Brasil e no mundo, como auxílios de renda e mais investimentos para ajudar a economia a voltar a andar. O problema é que mantê-los não cabe no limite que o teto criou.
Como funciona o teto
O teto dos gastos foi criado pela Emenda Constitucional 95, de dezembro de 2016, e passou a vigorar em 2017.
Ele criou um limite de crescimento para o orçamento da União: o total a ser gasto pelo governo e os órgãos ligados a ele a cada ano só pode aumentar o equivalente à inflação do ano anterior.
Esse reajuste deve ser feito pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), acumulado em 12 meses até junho do ano precedente. A regra tem validade de 20 anos, podendo ser revista a partir do 10º ano, isto é, em 2027.
Na prática, o mecanismo congela os gastos em termos reais por esses 20 anos – como o crescimento é limitado à inflação, ele apenas recompõe os aumentos de preços, mas não muda a quantidade total de bens e serviços pagos. Com o tempo, a tendência é que os gastos públicos, uma vez congelados em termos reais, fiquem menores em relação ao PIB.
Os gastos contemplados incluem os orçamentos de cada um dos ministérios, o Judiciário federal, o Congresso, os salários de servidores como professores, profissionais da saúde e outros e também os benefícios sociais, como aposentadorias, abono salarial e seguro-desemprego. Investimentos, como os de infraestrura, também estão na conta.
Gastos obrigatórios x discricionários
O importante é que a soma de todos esses gastos respeite o limite de crescimento da inflação. É possível que alguma rubrica cresça mais, mas desde que haja corte em algum outro lugar para que todos possam continuar cabendo juntos sob o mesmo teto.
É aí que começam os problemas. Uma parte dos gastos do governo é definida pela Constituição e não podem ser mudada, são as chamadas despesas obrigatórias.
Nelas estão as aposentadorias, benefícios sociais e os salários dos servidores, que crescem conforme cresce o número dos beneficiados. As despesas obrigatórias já tomam mais de 90% do orçamento e seguem aumentando, puxadas principalmente pela Previdência Social.
O resultado é que, se o teto não sobe, tem que haver cortes, e eles só podem ser feitos nos 10% restantes, onde estão as despesas chamadas discricionárias. “Aí entra tudo: de investimentos a gastos com limpeza, conta de água, energia e o custeio geral da máquina”, explica o diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto.
“Pelo teto, o orçamento do ano que vem deverá ser de R$ 1,485 trilhão, sendo que as despesas obrigatórias tomarão R$ 1,410 trilhão. A diferença de R$ 75 bilhões é bastante inferior aos R$ 90 bilhões necessários para manter a máquina minimamente funcionando”, disse ele.
Saúde e educação são exceção
As únicas pastas que ganharam regras próprias de reajuste na emenda do teto foram as da Saúde e da Educação. Diferentemente das demais, que podem ser aumentadas ou reduzidas conforme a necessidade (desde que, no conjunto, respeitando o teto), estas duas devem necessariamente ter o reajuste da inflação do ano anterior, no mínimo.
Antes, o orçamento delas devia cumprir uma porcentagem mínima da arrecadação de impostos. Se a receita caísse em algum ano, o orçamento das duas podia cair também. Dessa maneira, ao obrigar o incremento anual mínimo pela inflação, a nova regra criou uma espécie de piso para elas, garantindo que seus recursos nunca ficassem menores do que no ano anterior.
Este ponto, entretanto, foi desde o início alvo de críticas de especialistas do setor. “Os anos em que a arrecadação cai são a exceção, e, não fosse pelo teto, as despesas com saúde e educação cresceriam com ela”, disse o economista João Prates Romero, coordenador do grupo de pesquisas em políticas públicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O que dizem os defensores
A emenda do teto foi criada, em 2016, no auge do desarranjo das contas públicas e na tentativa de criar condições para que elas voltassem aos trilhos.
As contas estavam no vermelho, os gastos cresciam sem esteio, a dívida havia disparado, os juros estavam a dois dígitos, a inflação era alta e o país tinha acabado de perder o grau de investimento, até hoje não recuperado. Para os defensores do teto, o mecanismo foi essencial para dar início à reversão desse quadro.
A volta da credibilidade é tida como fator essencial à redução dos juros. Além disso, a rédea nas despesas obriga a uma revisão e redução gradativa dos gastos excessivos, o que impede que, em um futuro próximo, o Brasil acabesse ou muito mais endividado, ou tendo que aumentar ainda mais os impostos para pagar a conta crescente.
“O teto afiança à sociedade e aos agentes econômicos a solvência da União, o que ancora as expectativas de inflação e permite ao Banco Central praticar sua política monetária livre do espectro da dominância fiscal”, escreveu um grupo de 96 economistas em um manifesto aberto publicado na semana passada, no jornal Folha de S.Paulo, em defesa da regra fiscal.
O que dizem os críticos
Para os críticos, se não completamente equivocado, o teto de gastos ao menos errou no grau, e poderia ser revisado para incluir um pouco mais de flexibilidade. “Nenhum país do mundo adotou regras fiscais tão rígidas, com congelamento total dos gastos por um período de 10 anos”, disse Romero, da UFMG.
O maior efeito colateral dessa rigidez, argumentam, está no estrangulamento dos investimentos públicos, o que, em última instância, é também o que já vinha arrastando a taxa de crescimento do país. Para muitos, a retirada dos investimentos da conta do teto já seria uma possibilidade.
“Precisamos de novos instrumentos fiscais que permitam uma estabilização do ciclo econômico, viabilizem o aumento dos investimentos públicos e garantam as políticas de transferência de renda e a prestação de serviços públicos de qualidade”, escreveu um outro grupo de economistas, também em carta aberta, desta vez para pedir o fim do teto dos gastos. O documento, feito em resposta ao primeiro, foi assinado por 381 profissionais.
(CNN Brasil)