Aspectos criminais e processuais do caso do “menino Miguel”
* Dr. Gabriel Huberman Tyles
A pandemia do COVID-19 estabeleceu uma vida menos acelerada, mais humana e transformações que, com certeza, deixarão diversas lições para essa e também para as próximas gerações.
Contudo, em meio a essa pandemia do novo coronavírus, lamentavelmente uma tragédia também vem sendo muito discutida sob o ponto de vista jurídico-penal, qual seja, “o caso do menino Miguel”.
Para contextualizar, o caso diz respeito a uma criança que caiu do 9º andar de um prédio, em Recife, no dia 2 de junho. As circunstâncias envolvem a ex-empregadora da mãe da criança e a própria mãe do menino Miguel.
De acordo com o noticiário, Miguel teria ficado sob a guarda da ex-empregadora, enquanto a mãe do menino Miguel levava o cachorro da família para passear. Neste período, as imagens veiculadas pela mídia mostram que a ex-empregadora teria permitido que o menino Miguel subisse sozinho pelo elevador até o 9º andar, sem o acompanhamento de um adulto. Após isso, o menino sofreu uma queda de aproximadamente 35 metros e acabou falecendo.
Antes da conclusão do Inquérito Policial, a mídia noticiou que a ex-empregadora foi presa em flagrante por homicídio culposo e acabou sendo libertada após o pagamento de fiança.
O homicídio culposo (art. 121, § 3º, do Código Penal), se dá por meio de imprudência, imperícia ou negligência. Não há qualquer intenção de praticar o crime, há apenas um “descuido” que acaba gerando o resultado não esperado. A pena do homicídio culposo varia de um até três anos.
Contudo, pelo que se sabe da mídia, as investigações prosseguiram e o Inquérito Policial que apura o caso do menino Miguel foi concluído com o “indiciamento” da ex-empregadora, pelo crime de “abandono de incapaz, com resultado morte”, estabelecido pelo artigo 133, parágrafo 2º, do Código Penal, que prevê pena de 04 até 12 anos.
De acordo com o que estabelece o predito crime:
Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:
(…)
- 2º – Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
Neste ponto, é importante esclarecer que o abandono de incapaz com resultado morte é uma figura preterdolosa.
Isso quer dizer que há dolo no antecedente e culpa no consequente. Ou seja, o agente que pratica tal delito tem o dolo de abandonar, ou seja, deixar só. O resultado “morte”, porém, vai além do inicialmente desejado pelo autor.
Assim, ao menos sob o aspecto jurídico-penal, sem qualquer “julgamento” sobre o caso em concreto, é perfeitamente possível a subsunção de “abandono de incapaz” para o agente que deixa só uma criança que tem a “vigilância”, ainda que momentaneamente.
Contudo, é importante esclarecer como funciona o Inquérito Policial, pois, é certo, o Ministério Público não está vinculado a capitulação legal dada pelo Delegado de Polícia.
Com efeito, ao final das investigações, o Delegado de Polícia elaborará um relatório detalhado para que seja possível encaminhar o Inquérito Policial ao Ministério Público.
Ao receber o Inquérito Policial, o membro do Ministério Público deverá analisar todos os elementos colhidos na fase policial e promover o arquivamento (se entender que não há crime) ou, então, oferecer a denúncia em face da pessoa investigada (caso entenda pela configuração de algum crime).
Logicamente, se o Ministério Público ainda não estiver com a convicção formada, poderá solicitar mais diligências policiais para que seja possível chegar a uma conclusão (arquivamento ou denúncia).
Assim, o Ministério Público poderá ou não concordar com a capitulação dada pelo Delegado de Polícia.
Isto é, o membro do Ministério Público poderá entender pela existência de outro delito, como, por exemplo, o já mencionado “homicídio culposo” ou até mesmo o “homicídio doloso”.
Com relação ao homicídio doloso, este é caracterizado quando há a vontade livre e consciente de conseguir o resultado ou, então, quando o agente assume o risco de produzir este resultado (dolo eventual). A pena estabelecida pelo legislador é de seis a vinte anos (art. 121, caput, CP).
Por fim, é importante deixar claro também que as questões relacionadas ao caso do “menino Miguel” estão só começando pois, é certo, somente com a conclusão do Inquérito Policial, a Ação Penal terá, ou não, o seu início.