BEM DO ESTAR NA QUARENTENA | Como lançar um olhar não binário para enxergar a pandemia?
Por Isabel Marçal
Na última reflexão que compartilhei, convidei a todos que trocassem as lentes – com as quais têm olhado para o isolamento social – para ver que é possível enxergar pontos positivos deste momento. E, imediatamente, isso me remeteu a um pensamento que constantemente me deparo e que neste contexto é extremamente necessário para ensejar uma reflexão coletiva. “Por que algo precisa ser classificado como certo ou errado? Bom ou ruim? Estamos sempre denominando – quase que como uma conduta obrigatória – os acontecimentos, sentimentos, atos, relações e até nós mesmos, diante de uma maneira binária, excludente, dicotômica. E, com isso, perdemos a visão do todo, das especificidades; na maioria das vezes, deixamos passar a análise de possibilidades e oportunidades.
Tal esforço tem início nas argumentações dos gregos antigos – da filosofia de Aristóteles entre outros filósofos – sobre a realidade e seus elementos, a partir da razão como fio condutor do conhecimento e que centraliza o ser humano como único autor. Os modelos classificatórios se apresentam como formas de organizar o mundo conhecido, ou mesmo aquele ainda desconhecido pela espécie humana. Classificamos as realidades hierarquizadas e subordinando-as às lógicas produzidas pelo pensamento.
Então, podemos dizer que na visão dos filósofos clássicos, o “ser alguma coisa” tem o nome de identidade. Sendo que, cada pessoa/coisa tem a sua própria identidade e nada (algo ou indivíduo) tem a mesma identidade. De acordo com esse raciocínio, é lógico afirmar que o dia não é noite. Para o mundo ocidental, existe uma necessidade prática ou pedagógica neste tipo de classificação, que gera até uma apreensão do mundo que nos cerca, pois a vida diária a educação e o controle social dependem dessa prática.
Durante muitos anos esse foi um tema muito abordado por mim, em rodas de conversas e até sessões de terapia. A filosofia oriental somada à Psicologia Positiva foi onde encontrei as principais bases do meu entendimento atual. Os orientais não diferem o dia e a noite; o dia gera a noite e vice e versa – é uma transformação que ocorre, muitas vezes, sem nem nos darmos conta. Estamos falando de uma unidade que é o dia, composta de 24 horas e períodos diurnos e noturnos que são interdependentes. Do mesmo modo, não diferenciam, também, protestantes e católicos; negros ou brancos; heterossexuais e homossexuais; ou qualquer tipo de segregações, que excluam os seres humanos ou elementos da natureza.
Acredito que, enquanto uma pessoa tiver uma visão baseada no conceito “isto ou aquilo”, todas as coisas da vida irão continuar isoladas, sem fluidez e estagnadas. Precisamos praticar uma abordagem da realidade diferente, a visão paradoxal: no qual passaremos da divisão do “isto ou do aquilo”, para um olhar de união, inclusão, totalidade e, principalmente, com o conceito do “isto E aquilo”.
Uma grande amiga sempre me dizia, existirão sempre muitas explicações para o mesmo fato, tudo depende do referencial, do repertório de quem conta ou vive. E se formos pensar, isso não está errado. Por exemplo, um objeto que está à direita de uma pessoa, está à esquerda da outra, não é? Quem tem uma visão paradoxal da vida, consegue enxergar os dois lados da moeda, estar atenta aos opostos que são complementares e não se apegar a coisas consideradas boas ou ruins. Aqui, se faz necessária uma observação importante: não estamos dizendo para somente entender situações pelo lado positivo, afinal estamos falando de uma visão abrangente, que inclui o positivo e negativo, ao mesmo tempo.
Uma visão do todo é essencial para evitarmos defender somente uma parte da verdade, carregarmos crenças limitantes por uma vida, criarmos facções e sermos demasiadamente hostis, por simples pontos de vistas. É enxergar em profundidade, é sair do lugar, passear na realidade, é não se fixar no mesmo lugar. Como diria Roberto Otsu, estudioso da cultura oriental, a paz interior está na integração dos opostos, na união dinâmica dos contrários, na transcendência da dualidade e dos conflitos.
Para começar a praticar essa nova visão e mudar o seu olhar, desafio os leitores a pensar em três momentos, referentes à própria vida ou do mundo, e elencar pontos positivos e negativos; convido-os a todos os dias – ou naqueles dias tidos como ruins –, que tentem enumerar pelo menos duas gratidões daquele dia.